sexta-feira, 29 de outubro de 2010

TODO DIA É DIA DE LIVRO


Desenho de Karmo (www.karmo.com.br)



No dia 29 de outubro comemora-se o Dia Nacional do Livro. Poesia e Prosapopoeia, comemora do seu jeito e homenageia Manoel de Barros, o  poeta que escreve "livros para durar e não vender nem muito e nem depressa. Dá cada nome aos seus livros, que nos leva a pensar como foi que ele "inventou" esses nomes, como "inventa" essas palavras de letras trocadas para descobrirmos que só escritas daquela maneira têm verdadeiro significado, o significado dos noventa por cento de invenção e dos dez por cento de mentira, como o poeta já referiu sobre sobre seus escritos. E escreveu poemas e histórias em seu Livro das Ignorãças, Livro Sobre Nada e em todos os demais, porque para Manoel de Barros "Há várias maneiras de não dizer nada. A poesia é uma delas."
Será? Confira.


PRETEXTO

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora (LIVRO SOBRE NADA)



 Porém, como Todo Dia é Dia de Livro, mais Manoel de Barros para ler amanhã e depois de amanhã, e depois, e depois, e depois, e...


NARRADOR APRESENTA SUA TERRA NATAL

Corumbá estava amanhecendo.
Nenhum galo se arriscara ainda.
Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbedo.
Os ventos se escoravam nas andorinhas.
Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que
O rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.
Já posso ver na semi-escuridão os canoeiros que
voltam da pescaria.
Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto.
Aqui é a cidade velha.
O tempo e as águas esculpem escombros nos
sobrados anciãos.
Desenham formas de larvas sobre as paredes podres
(são trabalhos que se fazem com rupturas - como um poema).
Arbustos de espinhos com florimentos vermelhos
desabrem nas pedras.
As ruínas dão árvores!
Nossos sobrados enfrutam.
Aqui nenhuma espécie de árvore se nega ao gorjeio
dos pássaros.
Agora o rio Paraguai está banhado de sol.
Lentamente vão descendo as garças para as margens
do rio.
As águas estão esticadas de rãs até os joelhos.
Há um rumor de útero nos brejos que muito
me repercute.
O que temos na cidade além de águas e de pedras
São cuiabanos, papa-bananas, chiquitanos e turcos.
Por mim, advenho de cuiabanos.
Meu pai jogou canga pra cima no primeiro
escrutínio e fugiu para cá.
Estamos na zamboada.
Aqui o silêncio rende.
Os homens deste lugar são mais relativos a águas do
que a terras.
Há sapos vegetais que dão cria nas pedras.
As pessoas são cheias de prenúncios: chegam de ver
pregos nadar e bugio pedir a benção.
Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce
por dentro deles um desejo de árvores e aves.
Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o
verdor primal das águas com as vozes civilizadas.
Agora a cidade entardece.
Parece uma gema de ovo o nosso pôr-de-sol do lado
da Bolívia.
Se é tempo de chover desce um barrado escuro por
toda a extensão dos Andes
e tampa a gema.
— Aquele morro bem que entorta a bunda da
paisagem — o menino falou.
Há vestígios de nossos cantos nas conhas destes
banhados.
Os homens deste lugar são uma continuação das
águas. (LIVRO DE PRÉ-COISAS)


                                                      Foto: Divulgação











                                  

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