Para um amigo tenho sempre um relógio esquecido em qualquer fundo de algibeira. Mas esse relógio não marca o tempo inútil. São restos de tabaco e de ternura rápida. É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
*"Ronaldo Monte de Almeida é autor de Pelo canto dos olhos, livro de poemas, e de Memória Curta, livro de contos e crônicas.
Nasceu em Maceió- Alagoas, em 1947. Com onze anos de idade foi aprender a viver no Recife. Vive há vinte anos em João Pessoas, ganhando como poeta e escritor a vida que perde como professor do Departamento de Psicologia da UFPB. É Doutor em Teoria Psicanalítica, mas isto já é fio para... "
Considero um oportuno prólogo para responder sua inquisição sem que, ao final, me destine à fogueira como uma bruxa, ou como a Galileo destinaram o silêncio e a condena.
Silenciar uma correspondência significa uma perda, uma despretensiosa amizade poderá resultar em muitas rimas, sem conotações pessoais, poéticas, apenas.
Não sei se me engano ao responder seu questionário, quais as questões me correspondem, quais se destinam à grega Ariadne, quais deveriam responder a tcheca Milena?
"Todos nós, aparentemente, conseguimos ir vivendo porque, num dado momento, somos capazes de nos refugiar na mentira, na cegueira, no entusiasmo, no otimismo, numa convicção absorvente ou em qualquer outra coisa.” (Milena Jesenska -1896- 1944)
Por mais compreensiva que seja a jornalista tcheca, e a curiosidade que seu ar misterioso desperta, pensando bem, se o interesse é pelo que pensa Ariadne que o traz preso a seu fio, melhor será unir-me a elas e tentarmos responder-lhe, questão a questão, essa sinuosa indagação.
Se eu tenho opinião formada a respeito de mim mesma? Não sei, inutilmente parecemos grandes. Ainda que em sonhos quisesse conhecer-me, nada sabemos tudo imaginamos. Quanta tristeza e amargura afoga em confusão a estreita vida. Se me recordo quem fui, me vejo outra e o passado é presente na lembrança. Quem fui é alguém que amo, ainda que em sonho, ainda que na imaginação. Apenas o instante me conhece. Nada é lembrança de mim mesma e sinto, quem sou e quem fui são sonhos diferentes.
As almofadas lacaneanas me deram sono. As respirações e os exercícios reicheanos me deixavam tonta. Jogo de cintura não faz mal a ninguém, vejamos as bailarinas dos sete véus, com seus quadris ondulantes e suas cinturas de vespa. A propósito, o que leva você a acreditar que minha pele é macia?
Se eu sonho, se tenho algum sonho preferido, proibido? Não faço outra coisa a não ser sonhar. O sonho é bom porque despertamos para saber o que é bom. Às vezes o sonho é triste. Acordo sempre ao raiar do dia e escrevo com o sonho que perdi. Meu sonho preferido é qualquer um dos que não realizei. Os sonhos proibidos não posso revelar.
Se eu sou contra alguma coisa? Claro, principalmente as injustiças mundanas. Se me atrito contra o tempo, se o passar do tempo me incomoda? Quem não se atrita contra o tempo? Onipotente nos traz amarrados a ele, da mesma forma que o fio o traz amarrado (quer se soltar, mas a curiosidade lhe mantém atado- ainda que insista em negar).
Se admito discutir contra quem e a favor, se sou capaz de encontrar pontos em comum? Se ao chegar a uma síntese me sinto satisfeita ou formulo outra questão? Ser cordata e flexível, evitar fazer valer pontos de vista combinam com as outras 11 casas do zodíaco. A humildade, entretanto, pode ser a maior das virtudes e está acima de todos os títulos e diplomas amealhados ao longo da vida. Guardar-los na gaveta pode ser a decisão mais sábia que os pregos na parede. Questionar sempre, conformar-se jamais.
Se já tentei mudar o mundo? Pinos e suturas consolidam o que chamei de “murros em ponta de faca”, deixaram cicatrizes lembrando as tentativas de mudar o mundo. Apesar de um trecho de minha história, esqueço que metamorfose é coisa para insetos e que planetas sofrem intempéries.
Como? Não entendi. Alguma coisa faz sentido? Que idéia eu tenho das coisas? Qual a opinião tenho das coisas e efeitos? O que já meditei sobre Deus e a alma? E sobre a criação do mundo?
Não sei. Pensar nisso é fechar os olhos e não pensar. É fechar as cortinas de uma janela sem cortinas.
E o mistério das coisas? Sei lá o que sei sobre o mistério das coisas. O que eu sei? O que é o mistério? O único mistério é que haja alguém que pense no mistério.
Se eu mudei? Se nós mudamos? A proposta de ser uma metamorfose ambulante é do Raul Seixas. Porém, eu também não tenho opinião formada sobre quase nada. Manter a coerência e tentar acertar em tudo cansa. Não serei Zen nunca e meu biotipo me impede de levitar.
... Lo que vemos de las cosas son las cosas:
¿Por qué habíamos de ver una cosa si hubiese otra?
¿Por qué ver y oír sería engañarnos si ver y oír son ver y oír?
Lo esencial es saber ver pensando,
saber ver cuando se ve
no ver cuando se piensa.
Por esto (triste de nosotros que llevamos el alma vestida)
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
o menino fazia prodígos.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.