domingo, 23 de dezembro de 2012

FOMOS FEITOS PARA O QUÊ?





                                                      Reis Magos- Antônio Poteiro
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


                  (Poema de Natal - Vinícius de Moraes)

 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Homo sapiens?


O Homem Vitruviano - Leonardo da Vinci


O BICHO
                   Manuel Bandeira   

Vi ontem um bicho
Na imund
ície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
N
ão examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho n
ão era um cão,
N
ã
o era um gato,
Na era um rato.
O bicho, meu Deus, 
        era um homem.      
                                         
                                       

                                  Caricaturas - Leonardo da Vinci


O MACACO
                                 
                              Arnaldo Antunes

O macaco se parece com o homem
A macaca parece mulher
Algumas pessoas se parecem
Outras pessoas se parecem com outras
As macacas de auditório são meninas
As crianças parecem micos
Os papagaios falam o que pessoas falam
Mas não parecem pessoas
Para os cegos os papagaios parecem pessoas
O homem veio do macaco
Mas antes o macaco veio do cavalo
E o cavalo veio do gato
Então o homem veio do gato
O gato veio do coelho
Que veio do sapo
Que veio do lagarto
Então o homem veio do lagarto
O lagarto veio da borboleta
Que veio do pássaro
Que veio do peixe
Pessoas se parecem com peixes
Quando nadam
Pessoas se parecem com peixes
Quando olham o vazio
Pessoas se parecem com peixes
Quando ainda não nasceram
Pessoas se parecem com peixes
Quando fazem bolas de chiclete
Macacos desaparecem
Peixes parecem peixes
Micróbios não aparecem
Todos se parecem
Pois se diferem

 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

DA CLAREZA DAS PALAVRAS

                                                                  Divulgação



 Berna, 13 de outubro 1946.
 

 Fernando,
 que bom receber carta sua.

(...)Demorei tanto a responder por motivos exteriores ao prazer que tenho em receber carta sua e ao gosto de lhe responder. Por que é que você hesita em cada carta, sobre se deve ou não mandá-la? Acho que sou tão seca que corto o movimento das pessoas. E só quem é assim é que pode compreender como é ruim ser assim.
   Estou aqui em pleno outono, e apesar de ser outono, apenas por ser "pleno", tem o mesmo fulgor de primavera plena, de inverno pleno - a impressão que dá é que alguma coisa está madura. Talvez sejam as maçãs, 
      que
        são
         redondas
          e
           vermelhas

      E depois dessa extrema poesia, peço, porque estou com frio, uma esmolinha pelo amor de Deus, e para rimar digo adeus, que é rima pobre e nua, mas, ai de nós, absoluta. Recebam um abraço de saudade.

         

                                 Clarice

   


Cartas perto do coração - Dois jovens escritores unidos ante o mistério da criação.
Fernando Sabino, Clarice Lispector. 2ª ed. Record.2001.

Em 2001, Fernando Sabino organiza e lança, pela editora Record, Cartas perto do coração, contendo a correspondência que manteve com Clarice Lispector de 1946 a 1969 e notas importantes para a devida compreensão do contexto em que se dá essa troca de missivas. (Leia mais: http://ims.uol.com.br/Clarice_Lispector/D141

domingo, 9 de dezembro de 2012

A CASA DOS SONHOS

http://www.faperj.br/images/mapa_baia/caminho-niemeyer_gr.jpg


A CASA DO OSCAR

                                                                                     
A casa do Oscar era o sonho da família. Havia o terreno para os lados da Iguatemi, havia o anteprojeto, presente do próprio, havia a promessa de que um belo dia iríamos morar na casa do Oscar. Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar. Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno da Iguatemi. 

Desse modo a casa do Oscar, antes de existir, foi demolida. Ou ficou intacta, suspensa no ar, como a casa no beco de Manuel Bandeira.

Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra minha mãe e sai batendo a porta da nossa casa velha e normanda: só volto para casa quando for a casa do Oscar! Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguazes, projeto do Oscar. Vivi seis meses naquale casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. 

Regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho um canudo com a casa do Oscar.


Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é a casa do Oscar. 
                                                                          (Chico Buarque)

                                                    

Lições de Arquitetura
                              Para Oscar Niemeyer

No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não faz de pedra
nossas casas:
faz de asas)
No coração de Argel sofrida
fez aterrizar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com matéria dura:
o ferro o cimento a fome
da humana a arquitetura
nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve

(Ferreira Gullar Toda Poesia/ Na vertigem do dia – 
Editora José Olympio)