CARTAS


Castelo da Pena- Sintra-PT (sobre fotos y pinos-Flickr.com)


De LUÍS DA CÂMARA CASCUDO a   HELOÍSA MARANHÃO


Natal, 23 de setembro de 1979.

     Heloísa Maranhão, menina querida. Gratíssimo pela afetuosa missiva. Sua presença é uma visão diária no Sobradinho. Encantou-me a Rainha morta. Clara. Harmoniosamente. Vibrante. Enternecedora. A queridíssima Bá é que poderia ter modificado a tragédia, cujo fatalismo os séculos prescreveram. Bá, com os encantos africanos dos Orixás benfazejos, aniquilaria os três sicários, salvando a linda Inês. Uma berlinda, escoltada de guerreiros nagôs, emplumados e soberbos, levá-la-ia para a serra de Sintra, aguardando a vinda amorosa de D. Pedro. Por que Bá não fez o milagre lógico? Seria uma modificação útil. Por que o deus Kronos, o Tempo, não altera o determinismo sinistro das tragédias? A oportunidade é esta, dependendo da Heloísa, que significa a destemida, a indômita, a guerreira, a denodada. Salve Dona Inês e mate os três sicários do Rei Afonso. Avante, Heloísa querida!
    
                Beijo na mãozinha, envia o seu

Luís do Sobradinho



Em:Cartas do Coração - Uma antologia do amor
elizabeth Orsini (Org.) Rocco, 1999)





LOU ANDRÉAS-SALOMÉ A RILKE

Göttingen, quarta-feira, 24 de junho de 1914.
 
     Após uma ausência de dois dias (para ir falar com alguém) estou de volta hoje e inteiramente de acordo com suas palavras... E você se lembra do que me havia dito? Os olhos celebram núpcias num olhar – não apenas no sentido poético, mas, para dizer a verdade, no sentido mais corporal, até à agitação do sangue, como se em semelhantes momentos se produzisse muito mais que um simples olhar. (Como no caso de uma jovem que se mirava em um espelho, enquanto se mostrava.) Mas, quanto aos olhos, abandonados ao esforço de sua procura, além do limite do que se devia levar habitualmente ao espírito – eles apenas se tornavam em sua visão cada vez mais corporais – (processos subterrâneos não se efetuando à superfície do corpo, disposta para o exterior) – só conheciam estranhos tormentos; pois a “obra do coração” em contato com o que apenas tinha sido visão artística só podia produzir-se a partir do interior. (...) Até que o coração bata no ritmo do grande amor, no qual o exterior e o interior se unem, o amor que de repente compreende todos os seus tesouros e se inclina sobre eles como sobre noivas.
            O que o amor faz assim é obscuro e soberbo, e situa-se no caminho da vida, que ousaria querer descobrir os seus primeiros frutos; você mesmo, aliás, você o viverá. Querido, meu velho e querido Rainer, parece que eu não deveria de modo algum escrever isso aqui; aliás, não há nada aqui que se possa verdadeiramente escrever. (...)
            E eu gostaria de escrever sem parar e dizer: - não que eu saiba verdadeiramente muitas coisas, mas porque estas marcas de seu coração, estas marcas profundas, novas, eu as percebo no fundo de minh’alma (ainda que diferentemente de você, pois, sendo mulher, encontro-me de qualquer forma enraizada neste domínio). (...)
                                                  Lou
                                                                                                                                                                                                                              


                                                                  
Imagens:Google images

De CAZUZA A LÚCIA ARAÚJO

Mãe,

Esse poema não tem nada a haver (sic) com o dia das mães porque o dia das mães não tem nada a haver. Com amor.
                                                                                Cazuza

 Fonte: luisfabianoteixeira.blogspot.com

Bem que teus olhos podiam me dizer coisas mais bonitas
Do que a putaria implícita a cada piscada sacana
A cada gesto repetido, meu amor
Você bem que podia dizer coisas menos vulgares
E me chamar pra tomar sorvete, essas babaquices
Que uma mulher carente como eu precisa
Pra identificar qualquer coisa parecida com amor

Eu quero uma dúzia de rosas
Porque meu coração é feito flor que não nasceu direito
Arrancada do galho por alguma mão distraída
Dessas que passam pela rua catucando tudo...






Villa Lobos em foto dedicada a Mindinha

  De VILLA LOBOS A MINDINHA


Rio, 25/7/52


Mindinha,

   Com o sangue do meu sangue te escrevo alegremente, porque amanhã é o dia 26 de julho e tu deves nascer outra vez na minha vida, sem contarmos o tempo, apenas felizes até a morte, que será daqui a muitos e muitos tempos, quer dizer, a séculos, se possível.

    Abraços e mil beijos do teu____?____ benzinho.

Imagem: Divulgação




De RAINER MARIA RILKE*



  Estar sozinho é um verdadeiro elixir, é um estado que impele a doença totalmente à superfície. Primeiro ele deve se tornar ruim e péssimo- não se vai além disso em língua alguma-, mas depois fica tudo bem.

  Os mais solitários são, precisamente, os que mais contribuem para a coletividade.




*Em: Cartas do poeta sobre a vida: Martins Fontes, 2007.
Imagens:Divulgação

 

De MACHADO DE ASSIS A CAROLINA*


2 de março
Minha Carola



Já a esta hora deves ter em mãos a carta que te mandei hoje mesmo, em resposta às duas que ontem recebi. Nela foi explicada a razão de não teres carta no domingo; deves ter recebido duas na segunda-feira. Queres saber o que fiz no domingo? Trabalhei e estive em casa. Saudades da minha C., tive-as como podes imaginar, e ainda mais, estive aflito, como contei, por não ter tido cartas tuas durante dois dias. Afirmo-te que foi um dos mais tristes que tenho passado.
Para imaginares a minha aflição, basta ver que cheguei a suspeitar oposição ao F., como te referi numa das minhas últimas cartas. Era mais do que uma injustiça, era uma tolice. Vê lá: justamente quando eu estava a criar estes castelos no ar, o bom F. conversava a meu respeito com A.; foi sempre amigo meu, amigo verdadeiro, dos poucos que, no meu coração, têm sobrevivido às circunstâncias e ao tempo. Deus lhe conserve os dias e o restitua à saúde para assistir à minha e à tua felicidade.
(...)Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras, e que eu te apareço em tudo e em toda parte? É então certo que ocupo o teu pensamento e a atua vida? Já mo fizeste tanta vez, e eu sempre a perguntar-te a mesma cousa, tamanha me aparece esta felicidade. Pois olha: eu queria que lesses um livro que acabei de ler há dias: intitula-se A Família.Hei de comprar um exemplar para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dá vontade de casar.
Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás a melhor carta que eu poderia mandar, que é a minha pessoa e ao mesmo tempo lerei melhor.... 


De HENFIL A SUA MÃE*

 D. Maria

     Vivo me lembrando de como a mãe sempre me orientou contra os caminhos do mal. De como a senhora cortava as fotos das mulheres de maiô que O Cruzeiro publicava de maneira que meus olhos não vissem pro coração não sentir. Deu certo. Quer dizer, quase, Cortadas as cabeças, bustos e pernas, eu acabei me fixando no que sobrava e hoje posso ser considerado o maior tarado em pés desta ilha de paz. Só de ver uma sandália eu entro em pecado venial.
     Que mais? Hah! Mãezinha, lembra quando a noite chegava e eu pedia pra senhora contar casos de assombrações só pra dormir com o coração pulando. A história que eu gostava mais era aquela de como um comunista entrou numa igreja a cavalo e, quando já ia profanar o sacrário, virou uma estátua de mármore preto! Uau! Mas não sei por quê, a única visualização que meus oito anos conseguiram era que o comunista sacrílego tinha virado um baita telefone (naquele tempo era tudo) preto.
Não foi mula sem cabeça, não foi vampiro, mas comunistas que povoaram de terror minha infância. Cresci e o que vejo? Todo mundo lutando contra o comunismo. Botam eles na cadeia, cassam eles, expulsam eles do país, estouram seus aparelhos e recorrem seu farto material subversivos. E os comunistas aí insistentes, salientes. Outro dia aquele empresário Cláudio Bardella, perdeu a paciência e disse que os comunistas deveriam estar no Congresso Nacional. Aí também não, gente! Peraí Bardella! Deve haver uma maneira mais humana de se extirpar alguém da vida do país, não?
Um beijo e uma comunhão espiritual de seu filho

Henfil





*ORSINI, Elizabeth (Org). Cartas do Coração - Uma Antologia do Amor. RJ. Rocco, 1997)
  Imagens: Divulgação
         
 

2 comentários:

  1. Oi, Gra!

    Sou meio "analfabética" em blogs e desde ontem procurava as tais cartas de machado e de henfil.
    Hoje, mesmo sem pedir a são longuinho, achei. Adorei!

    Beijos,
    Nil.

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  2. Graça, querida, obrigado por todas as cartas. Lembrei-me, agora, das do Caio Fernando Abreu, que também são lindas.
    Beijos, amiga.
    Fábio

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