domingo, 31 de outubro de 2010

CADA TEMPO EM SEU LUGAR

Gilberto Gil

                                                                                 
                                                                Colaboração de Fábio Brito

Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar
Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar
Não posso me esquecer que a pressa
É a inimiga da perfeição
Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos
Aprendi a ser o último a sair do avião
Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom
Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum
Não posso me esquecer que o açoite
Também foi usado por Jesus
Se eu ando o tempo todo aflito, ao menos
Aprendi a dar meu grito e a carregar a minha cruz
Ô-ô, ô-ô
Cada coisa em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A bondade, quando for bom ser bom
A justiça, quando for melhor
O perdão:
Se for preciso perdoar
Agora deve estar chegando a hora de ir descansar
Um velho sábio na Bahia recomendou: "Devagar"
Não posso me esquecer que um dia
Houve em que eu nem estava aqui
Se eu ando por aí correndo, ao menos
Eu vou aprendendo o jeito de não ter mais aonde ir
Ô-ô, ô-ô
Cada tempo em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A velocidade, quando for bom
A saudade, quando for melhor
Solidão:
Quando a desilusão chegar




sexta-feira, 29 de outubro de 2010

TODO DIA É DIA DE LIVRO


Desenho de Karmo (www.karmo.com.br)



No dia 29 de outubro comemora-se o Dia Nacional do Livro. Poesia e Prosapopoeia, comemora do seu jeito e homenageia Manoel de Barros, o  poeta que escreve "livros para durar e não vender nem muito e nem depressa. Dá cada nome aos seus livros, que nos leva a pensar como foi que ele "inventou" esses nomes, como "inventa" essas palavras de letras trocadas para descobrirmos que só escritas daquela maneira têm verdadeiro significado, o significado dos noventa por cento de invenção e dos dez por cento de mentira, como o poeta já referiu sobre sobre seus escritos. E escreveu poemas e histórias em seu Livro das Ignorãças, Livro Sobre Nada e em todos os demais, porque para Manoel de Barros "Há várias maneiras de não dizer nada. A poesia é uma delas."
Será? Confira.


PRETEXTO

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora (LIVRO SOBRE NADA)



 Porém, como Todo Dia é Dia de Livro, mais Manoel de Barros para ler amanhã e depois de amanhã, e depois, e depois, e depois, e...


NARRADOR APRESENTA SUA TERRA NATAL

Corumbá estava amanhecendo.
Nenhum galo se arriscara ainda.
Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbedo.
Os ventos se escoravam nas andorinhas.
Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que
O rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.
Já posso ver na semi-escuridão os canoeiros que
voltam da pescaria.
Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto.
Aqui é a cidade velha.
O tempo e as águas esculpem escombros nos
sobrados anciãos.
Desenham formas de larvas sobre as paredes podres
(são trabalhos que se fazem com rupturas - como um poema).
Arbustos de espinhos com florimentos vermelhos
desabrem nas pedras.
As ruínas dão árvores!
Nossos sobrados enfrutam.
Aqui nenhuma espécie de árvore se nega ao gorjeio
dos pássaros.
Agora o rio Paraguai está banhado de sol.
Lentamente vão descendo as garças para as margens
do rio.
As águas estão esticadas de rãs até os joelhos.
Há um rumor de útero nos brejos que muito
me repercute.
O que temos na cidade além de águas e de pedras
São cuiabanos, papa-bananas, chiquitanos e turcos.
Por mim, advenho de cuiabanos.
Meu pai jogou canga pra cima no primeiro
escrutínio e fugiu para cá.
Estamos na zamboada.
Aqui o silêncio rende.
Os homens deste lugar são mais relativos a águas do
que a terras.
Há sapos vegetais que dão cria nas pedras.
As pessoas são cheias de prenúncios: chegam de ver
pregos nadar e bugio pedir a benção.
Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce
por dentro deles um desejo de árvores e aves.
Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o
verdor primal das águas com as vozes civilizadas.
Agora a cidade entardece.
Parece uma gema de ovo o nosso pôr-de-sol do lado
da Bolívia.
Se é tempo de chover desce um barrado escuro por
toda a extensão dos Andes
e tampa a gema.
— Aquele morro bem que entorta a bunda da
paisagem — o menino falou.
Há vestígios de nossos cantos nas conhas destes
banhados.
Os homens deste lugar são uma continuação das
águas. (LIVRO DE PRÉ-COISAS)


                                                      Foto: Divulgação











                                  

terça-feira, 26 de outubro de 2010

SE PERMITA AO PÔR - DO - SOL


ENCANTO
J. Velloso / Ulisses Castro


                                        Colaboração de Fábio Brito

Enquanto tanto pranto escorre
Canto-te o encanto que me corre
Ocorre-me ver-te em selvagem espanto
Em seu tonto amor que me comove
Move-me querer ter-te como manto
Do reisado do amor dos cânticos
"Filhos do sol" sob o luar andante
Cante, conte, mande
A tua bênção, a tua crença
Ata-me à tua luz secreta
Átrio que reluz na lembrança
Áureo tempo que em mim encerra
Minha voz na tua voz se lança

Silêncio,
Cantar é rezar mil vezes
É cachoeira com água de mar
É tocar no que não tem forma
Aroma que não se prende
Mas não se esquece
Umbigo é mãe agarrada na pele até o fim
Na pele do som da voz
Na voz da pele de deus
Emplumada, enfolhada, encharcada, em faísca
Seca, lisa, crespa
De rocha ou escama

Teu segredo ao meu silêncio se prega
Prego-me ao teu jeito nas andanças
Minha pele traz tua alma desperta
Tua alma é a pele da esperança
Se há amor eu me multiplico inteiro
Espero sempre o amor derradeiro
Dá-me coragem pra felicidade densa
Cante, conte, mande
A tua crença, minha esperança.





segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O BEM QUE HÁ NUM VERSO TRISTE



                                                         Foto: Pedro Rossi (Antuérpia)


A canção de Manuel Bandeira
Ribeiro Couto


                                   Colaboração de Fábio Brito


Já fui sacudido, forte,
De bom aspecto, sadio,
Como os rapazes do esporte.
Hoje sou lívido e esguio.
Quem me vê pensa na morte.

O meu mal é um mal antigo.
Aos dezoito anos de idade
Começou a andar comigo.
E esta sensibilidade
Põe minha vida em perigo!

Já sofri a dor secreta
De não ser ágil e vivo.
Mas, enfim, eu sou poeta.
Tenho nervos de emotivo
E não músculos de atleta.

As truculências da luta!
Para estas mãos não existe
O encanto da força bruta.
... Nada como um verso triste
― Verso, lágrima impoluta...

Poemetos de ternura e melancolia (1924). Roteiro da poesia brasileira: Pré-modernismo. Seleção Alexei Bueno. SP: Global, 2007, p.171.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

POR QUEM SABE CANTAR IRENES




                                               Foto: Pierre Verger


IRENE NO CÉU

                                                        Manuel Bandeira

Irene preta 
Irene boa                                              
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:                                               
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ELA












Uma mulher como tantas
a veste é mesmo de santa?
Um pé na terra, maga telúrica,
o outro flutua, selênica criatura.
Dou-te voz, acuada muda.
dou-te armas, indefeso alvo.
Basta do imaculado pranto.
Engendra o mar (aos céus, já os muitos acalantos).

Precisos pensamentos,
precisa dos pensamentos
Precisa das palavras, porque tudo é boca.
A contar contos,
 a aumentar pontos
Conta, me diga com quem contas?
Perdi a conta dos risos que guardei pra ti.

Imagem: Artesanato do Vale do Cariri- Juazeiro do Norte-CE


quarta-feira, 20 de outubro de 2010




IMPROVISO
                                                 
                                             Cecília Meireles

Eu mesma sou a culpada
dos malefícios alheios
A quem não podia nada,
eu é que fui dar os meios
para me ver maltratada.

Vai correndo, fonte pura,
não mires quem te bebeu.
Não queiras ver a criatura
que se nutriu do que é teu.
Salva-te da desventura!


POESIA E PROSAPOPEIA ... "É tudo do mesmo jeito."


SACO DE CEGO

  Oliveira de Panelas
                                                                               

Colaboração de César Ades

No saco de cego tem:
Arroz, feijão e farinha
fubá de milho e sardinha,
tem pão, café, tem xerém
algum dinheiro também,
sal, bolacha, amendoim,
tem pé de porco e pudim,
tem tripa e carne de bode.
Só outro cego é quem pode
ter tanta salada assim


No meu livro tem doutrina,
moral e filosofia,
humorismo, poesia.
Romantismo, disciplina,
oração e medicina,
filantropia e direito,
Tem mentira e preconceito.
Na misturada não nego:
Meu livro e saco de cego
É tudo do mesmo jeito.




Imagens: Divulgação

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

AS PROFESSORAS


Se esquecer é uma questão aberta, a passagem do tempo é inquestionável. “Até o silêncio passa”. “Até passarinho passa”. “A memória é amiga do tempo (...)”. 
 Falo da memória na qual guardamos as pessoas, daquelas que não nos saem nunca do pensamento, até quando se aborrecem do tanto que nos lembramos delas, pode até ser errado pensar demais nas pessoas, lembrar demais. Mas não há como tirar do pensamento as pessoas que queremos bem (a memória nem sempre é seletiva e guardamos na mesma memória as que não nos querem ou as que não queremos tanto). É que “O tempo, o tempo que passa inexorável, o “imenso tempo” está acompanhado da memória e quem não tem memória não tem mais vida, porque “só existe um tempo: o tempo vivo (...)”.  
Os professores não são mais homenageados,  nem somos mais lembrados, exceto por não ter aula  no dia do ano a nós dedicado, não dá para não ser nostálgica num tempo em que escolas se tornaram empresas, alunos clientes e, daqui a pouco, nem x saberão mais fazer. 
Como Bartô  guarda na memória os seus muitos professores, entre eles o avô paterno e Dona Maria Campos, me lembro especialmente de duas professoras.
Dona Rosa Maria, no pré-primário, que me fazia carinho com seu olhar de ternura (não lembro tenha encontrado outra professora com aqule olhar) e na hora da merenda servia o refresco em um copo articulado, dobrável, igualzinho ao citado pelo Bartô. Também não esqueci que aquele copo e seu "design" tão pouco funcional, sempre deixava vazar suco sujando a blusa do uniforme e o guardanapo estendido sobre a mesinha onde apoiava o lanche e o caderno de desenho.
 Lembro de Dona Beatriz, no primeiro ano do colegial, como uma  mulher  pouco comum para aqueles tempos, ao menos entre as que conhecia e rara entre as professoras. Com sua voz segura e conhecimentos além das regras gramaticais, suas palavras e atitudes me orientariam para o muito que viria pela frente na minha vida. Dona Beatriz ensinava a gostar de ler, a me interessar por política, a analisar a letra de uma música e entender que, se o “Tigre chegou na frente e metralhou a garganta do estudante”*, escondida neste verso havia outra história que não podia ser escrita dado que guardava muitos significados. Foi assim que Dona Beatriz  me respondeu o porque da censura.
Preferia me mostrar que era mais fácil gostar de teatro a fazer análise sintática, a fazer redações ao invés de cópias dos verbos, que escrever jograis e trazer minhas colegas a representá-los diante de toda a classe, daria mais resultado a decorar radicais gregos.
Depois que foi demitida da nossa Escola, nunca mais tive notícias de Dona Beatriz, desapareceu até dos arquivos da ditadura, mas jamais sairá da minha memória, pelo menos lá, se mantém viva. 
Não suportaram a alegria de Dona Beatriz quando nos dava aulas sobre a vida.




Dona  Rosa Maria e eu


* O Tigre: Música colocada em 2o. lugar no Festival Universitário da TV TUPI, em 1968. Interpretada pelo cantor Raí e o grupo Os Baobás.

Leia mais em: MERDA. Dias Melhores! Serroni, Vicente. Aruna Editora e Produtora Cultural. SP, 2008.



FORAM MUITOS, OS PROFESSORES
                           Bartolomeu Campos de Queirós

Colaboração de Fábio Brito
(Um professor como poucos conheci nos últimos anos)


(...) Não sei se aprendi a fazer contas com meu avô. Ele mais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. Meu avô devia supor que escola fosse o mundo inteiro, a vida inteira, com noite e dia, perdas e ganhos, dores e tristezas, sonos e sonhos.
            Mas eu somava o tempo de ausência de meu pai transportando manteiga, as horas sonoras do relógio, os suspiros na bandeja. Meu avô não usava toquinhos coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essa minha paixão pelos abraços e pelos laços.
            Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre: “Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar serviço melhor pra fazer”.
            Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o caminhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo me veio uma idéia: quando entrar para a escola, eu faço de conta que esqueci tudo e começo a aprender de novo. “Uma mentirinha é um santo remédio para botar um ponto final em conversa fiada”, me ensinou meu avô, coisa que comecei a praticar para encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pessoas que gostavam de indagar muito mais do que deviam.
            Cheguei de uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápis Johann Faber com borracha verde na ponta e mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como o acordeom de Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância. 
            Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como o algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. Comecei, assim, naquele depois de meio-dia, a praticar minha promessa: tomar bomba no tudo já aprendido e começar branco como o caderno Avante
            Dona Maria vestia-se por todo o sempre com roupa clara, sapatos fechados, meias de seda, blusa bordada em branco sobre branco e mais um lenço preso no cinto ou na pulseira do relógio para assear as mãos depois de escrever no quadro-negro. Ela me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu amor. Sua alvura na roupa, seu olhar capaz de ver muito depois das coisas, sua voz mansa – mistura de fortaleza e doçura, me instigavam ao silêncio. Ela não pedia, mas eu a presenteava.
            Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. Eu me esforçava, caprichava na letra e mordia a língua no canto da boca. De carteira em carteira, ela corrigia os exercícios deixando no ar um cheiro de paineira e primavera. Estação que eu não distinguia “a olho nu”, mas imaginava.
            Um dia dona Maria Campos trouxe Lili, menina que gostava muito de doce e olhava pra mim. Lili foi o meu primeiro amor. Eu lia os cartazes, colava as sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado como menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena.
            Fui escolhido para declamar no auditório da escola uma poesia. Ser escolhido já significava um prêmio. Decorei e repetia para as galinhas, os chuchus e a paineira o poema, cheio de medo de gaguejar e de decepcionar minha professora:

            Eu comi ontem no almoço
            A azeitona de uma empada,
            Depois botei o caroço
            Sobre a tolha engomada.

            Mas a mamãe logo nota
            E me ensina com carinho:
            O caroço não se bota
            Sobre a toalha, meu benzinho.

            O que ela me diz eu ouço
            Sempre com muita atenção
            E perguntei-lhe: o caroço, mamãe,
            Onde boto então?

            Toda pessoa de linha,
            De educação e de trato,
        O osso, o caroço, a espinha
            Põe no cantinho do prato.

            Eu depressa lhe respondo
            Com respeitoso carinho:
            Mas meu prato é redondo,
            Meu prato não tem cantinho!

        Não me lembro do autor dos versos ou se eram anônimos como eu, naquele fim de mundo, naquele miolo da Terra arredondada e sem aparentes arestas. Contudo, se não caíram no esquecimento, não devem ficar ignorados como outras coisas mais. Também não sei se eram aritmética aqueles problemas passados no quadro-negro, dividindo as dúzias de ovos e bananas, fracionando laranjas e maçãs em quatro ou oito partes iguais. Os litros de leite, se bem me lembro, divididos entre todos, me sugeriam pensar se a generosidade era um dom da vaca, do fazendeiro ou dos dois. Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro.
            Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitia dúvidas.
            Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de Sant’Ana, a mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. Só não me convenço de ter comido apenas a azeitona da empada.

Bartolomeu Campos de Queirós está entre os autores de literatura infanto-juvenil entrevistados pelo Museu da Pessoa para o projeto "Memórias da Literatura Infanto-Juvenil". Navegue na página do projeto e confira o conteúdo na íntegra!



domingo, 10 de outubro de 2010


ASAS

                                                       Foto:Pedro Rossi
Com o fio da mais fina aranha
teço asas que me levam daqui.
De que cor é esse fio?
Quais as cores das asas do demônio,
do arcanjo, do escaravelho, da águia?

Do que são feitas tuas asas,
que te levam mais longe do que as minhas?
Por que tuas asas reluzem,                                             
queimam a retina,ofuscam as idéias,
confundem o raciocínio?

Por que não vês o brilho das minhas asas?
Do que são feitas tuas asas?
De arame, de areia, de pedaços de jornais não lidos?
De plástico inflamável?

Então, por que foges do fogo?
Como vês minhas asas?
Quebradas, cortadas, molhadas,
Inúteis porque não me trazem de volta daí?



                                      Ilustração: Nick Bantok (Agenda de Sabine)

PROSA POÉTICA


                                                                                                                    Colaboração de 
Fábio Brito

                                                                   
"Sou dessa leva de gente que tem como sina ver demais. Sentir demais. Amar quase do tamanho do amor. Traço de nascença, uma estranha dádiva que, durante temporadas, pra facilitar a própria vida, egoísmo que seja, a gente tenta disfarçar de tudo que é maneira que aprende. Mas não tem jeito, nunca terá, nascer assim é irremediável, o que é preciso é desaprender o medo.Por tudo o que é mais sagrado nesse mundo e em quaisquer outros que não tenho certeza se existem, mas suspeito, muitas vezes eu desejei não ver tanto. Criança, quando senti isso sem saber palavras, inventei minha miopia. Não adiantou: o encurtamento dos olhos é só do lado de fora, por dentro eu vejo muito comprido. Alguns sentem vida, sentem beleza, sentem amor, com doses de conta-gotas. Eu, não: é uma chuvarada dentro de mim."

Ana Jácomo
                                                                                                                     
                           Ilustração: Nick Bantock (Agenda de Sabine)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010




PARA SEMPRE LORCA

"Deixaria neste livro/toda a minha alma./ Este livro que viu/ as paisagens comigo/ e viveu horas santas./ Que pena dos livros/ que nos enchem as mãos/ de rosas e de estrelas/ e lentamente passam! (...)"
                                                  PROLOGO -  Federico Garcia Lorca. 
                                               (Trad.) William Angel de Melo



Federico García Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha. Como o homem do sul da Espanha, de alma simples e direta, de estilo doce e comovente, é assim a poesia de Lorca, e  é de lá que ele trouxe para a sua arte a paisagem da Andaluzia impregnada pelo modo de viver das pessoas mais simples, de sua cultura e costumes, decorada pelos ladrilhos mouriscos pelos tons secos da terra com a qual se modela e esmalta a faiança no inconfundível azul do céu de Velásquez. 
Buscou resistir contra todo tipo de opressão, porém em 1936, ano da eclosão da Guerra Civil Espanhola, Federico Garcia Lorca, na mesma Granada,  foi preso e fuzilado por militantes franquistas, tornando-se símbolo da vítima dos regimes totalitários.
 

                                                PAZ

Soy un tipo pobre silencioso y apasionado que, así como el maravilloso Verlaine llevo dentro un lirio imposible de regar, y para los ojos tontos de aquéllos que me miran soy como una rosa con el tinte sexual de una peonía de abril, lo que no es verdad de mi corazón… (…) Mi  imagen y mis versos dan la impresión de algo muy pasional… y, sin embargo, en el fondo de mi alma hay un enorme deseo de ser infantil, muy pobre, escondido. Veo ante mi muchos problemas, muchos ojos que me atrapan, muchos conflictos entre la cabeza y el corazón y toda mi vegetación intenta entrar en un jardín dorado y lo intento una y otra vez porque me gustan las muñecas de papel y los juguetes infantiles… pero el fantasma que vive dentro de nosotros y nos odia me empuja sendero abajo. Uno tiene que seguir moviéndose porque tenemos que crecer y morir, pero no quiero prestarle ninguna atención… y, no obstante cada día que pasa tengo una nueva duda y una nueva tristeza. Tristeza del enigma de mi mismo."  (…) Creo que todo lo que hay a nuestro alrededor está lleno de almas que pasaron, que son los que provocan nuestras penas y que son los que entran en el reino habitado por esa virgen blanca y azul llamada (Melancolía… o, en otras palabras, el reino de la Poesía, (no concibo otra poesía que la lírica). Yo entré hace ya tiempo… Tras entrar en el reino de la Poesía, terminé por llenarme de amor por todo. Resumiendo, soy un chico bueno, que abre su corazón a todo el mundo… (…) Amo a Venus con locura, pero amo aún más la pregunta, ¿Corazón? Y sobre todo, me mantengo fiel a mi mismo, (…) ... quiero ser yo mí mismo.”


Fragmentos da carta que Lorca escreveu a um amigo poeta, dias antes de completar 20 anos, embora com idéias um pouco confusas e sem medir consequências, parecem fazer uma apresentação de si mesmo. Por seu caráter e seus poemas, tratava-se de uma pessoa apaixonada, pelo uso da palavra PAZ utilizada como título de sua carta-poema naquele instante da história espanhola sabia da existiência de um mundo além dos laranjais e oliveiras dos campos de Granada. De fora, ou de dentro de Granada o fato é que Lorca parecia ser como ele mesmo sugeria ser- um homem gentil,  um bom moço que via através da vidraça de sua confortável casa um menino que olhava para dentro de si.
Lorca não se prendeu somente aos costumes de sua terra como a traduziu em seu Cancioneiro Cigano, levando-o a ficar conhecido por toda a Espanha. Manifestou com outros tons suas preocupações existenciais, as  do menino que olha para dentro de si mesmo. 
Dramaturgo, poeta da irreverência e da metáfora, poeta do amor (e não apenas o amor cigano), o poeta carregava outra seleção de versos que necessitava de um espaço, ainda desocupado à sua época na Andaluzia rural, na Espanha franquista
Escreveu  em seus versos sobre todas as formas de amor sem ignorá-las, o que viria a ter um papel importante no desenvolvimento de sua arte. 
A literatura de Lorca se mostra como a de um espírito aberto para todos desde sempre,  a arte amável intimamente associada à paz, com sua generosidade lhe ensinou a não pertencer a maiorias seguras, mas a saber o que se sente ao ser ferido e insultado. Permitiu-lhe escrever poesia para aqueles que lutam e amam a paz, para os que não têm nada. 
Ensinou-lhe a enfrentar importantes questões existenciais, explorando-as e transcendendo-as por meio de sua arte. E ainda nos disse:
 “Si se me presentasen dos escalas,  por un lado mis propios sufrimientos, y la justicia por el otro, me inclinaría con todas mis fuerzas por la última.”


                     
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco en el mar
y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura,
Ella sueña en su baranda.
Verde carne, pelo verde,
Con ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana,
Las cosas la están mirando
y ella no puede mirarlas.


POEMAS

-Libro de Poemas
-Poema del Cante Jondo
-Primeras Canciones
-Canciones
-Romancero Gitano
-Poeta en Nueva York
-Llanto por Ignacio Sánches Mejías
-Seis Poemas Galegos
-Divan del Tamarit
-Poemas Sueltos

DRAMATURGIA

-Mariana Pineda
-La Zapatera Prodigiosa
-Bodas de Sangre
-Yerma
-La Casa de Bernarda Alba



GARCIA LORCA e SALVADOR DALI








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QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALERÁ





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